sábado, 2 de julho de 2011

Perfeição artificial

Até profissionais do setor são unânimes em concordar que há abuso na alteração de imagens em propaganda

Giselle Stazauskas

"Atenção: imagem retocada para alterar a aparência física da pessoa retratada”. Este é o aviso que, em breve, poderá aparecer em imagens publicitárias. Isso se for aprovado o Projeto de Lei 6.853/10, em trâmite na Câmara dos Deputados. Seu texto esclarece que as “imagens utilizadas em peças publicitárias ou publicadas em veículos de comunicação, que tenham sido modificadas com o intuito de alterar características físicas de pessoas retratadas, tragam mensagem de alerta acerca da modificação”. A “Lei do Photoshop”, como já foi apelidada, é de autoria do deputado Wladimir Costa (PMDB-PA), e prevê multa de R$ 50 mil para quem não cumpri-la. O projeto será analisado pelas comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; de Defesa do Consumidor; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. A reportagem de Propaganda não conseguiu ouvir o deputado Costa, mas fica claro que sua proposta é acabar com a falsa idealização do corpo humano, propagada principalmente por fotos de mulheres com pele de boneca e corpos de causar inveja, milimetricamente impecáveis, devido aos retoques feitos em softwares de edição de imagens, como o mais famoso deles, o Photoshop. França e Inglaterra também vão na mesma direção, com a defesa de que imagens com muitas alterações podem levar as pessoas a acreditarem em realidades que não existem, além de fazer com que mulheres e adolescentes sintam-se infelizes.
Apesar de a era digital ter criado recursos capazes de fazer mulheres comuns parecerem deusas, é fato que fotografias sempre foram retocadas, desde muito antes do surgimento do Photoshop. “Antigamente, ninguém sabia como era feito o retoque em laboratório, mas hoje todo mundo sabe que uma imagem é modificada por um software. As pessoas estão mais conscientes”, explica o fotógrafo Ricardo de Vicq. No mercado há quase 40 anos, é ele o autor de boa parte das imagens de divulgação do McDonald’s – a quem atende desde 1993. Sua foto do lanche Big Tasty foi vendida para mais de 20 países, inclusive para fora da América Latina. Vicq só fotografa comida de verdade e é a favor de se utilizar o mínimo necessário de retoques. Segundo ele, já há um movimento que pede imagens mais próximas do real. “Hoje, tudo passa pelo Photoshop para acertos de cor e contraste, mas não tiro e coloco pedaços”.
Celio Coscia, vice-presidente e professor de fotografia do Foto Cine Clube Bandeirante, ressalta essa diferença entre tratamento e manipulação de imagens. “O tratamento de imagens são correções que fazíamos na hora da ampliação, ajuste de exposição, cores e pequenos cortes. Isso sempre foi feito e é normal. Já na manipulação da imagem, as pessoas alteram a fotografia e seu conteúdo. Dentro de publicidade eram feitas montagens para adequar a imagem à mensagem desejada”. Coscia afirma que não é contra a manipulação na propaganda, pois ela trabalha justamente com o imaginário das pessoas para vender produtos. “O que não concordo, mesmo na área de publicidade, é a tal fotografia enganosa, em que alteram o produto, fazendo com que pareça melhor do que é”.
Com relação ao projeto de lei, os dois fotógrafos possuem opiniões distintas, apesar de concordarem com os aspectos negativos dos excessos de retoques em fotografias. Vicq acredita que não é uma obrigação legal que irá impedir a “pele de boneca”, por exemplo – moda que, segundo ele, já está durando mais tempo do que deveria. “As pessoas têm consciência de que as fotos são modificadas, é uma educação que vão adquirindo aos poucos. Saber que são retocadas já é um processo. Elas não acreditam mais em certas propagandas. Silicone também não é de verdade. Vai ter que colocar uma etiqueta indicando ‘modificado cirurgicamente’? Vamos poder corrigir uma olheira ou uma espinha?”. Já Coscia diz que não há problema algum na Lei, pois ela serve para que o consumidor não seja enganado. “Existe um abuso muito grande no uso do Photoshop alterando a imagem física das pessoas. Se repararmos em muitas fotografias, principalmente de mulheres, elas viraram bonequinhas de cera, sem pelos, sem poros. O pescoço é aumentado, rugas somem e até o formato do nariz e dos olhos são refeitos. Em muitos casos, a fotografia publicada é totalmente diferente da modelo contratada. Por isso, sou totalmente a favor da Lei. Obviamente, existem casos e casos, se estamos criando uma imagem lúdica, sem a intenção de lesar alguém, existindo sempre a presença de motivação para atingir os objetivos, não vejo mal algum, como também não vejo nenhum problema em colocar o aviso de que a imagem foi manipulada digitalmente”.

Livre arbítrio

O artista gráfico Daniel Xavier trabalha com retoques de imagens. No seu dia a dia lida diretamente com fotógrafos de todo o Brasil e com agências de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Brasília, principalmente, além de já ter atendido até agências da Europa e do Oriente Médio. Ele afirma que não é uma “fábrica de imagens” e nem tem a pretensão de se tornar uma. Seu processo é bastante demorado e ele pode passar até um ou dois dias trabalhando em uma única imagem. “Não concordo com essa Lei. A fotografia publicitária é uma coisa plástica, técnica, perfeita. Tudo é mexido, seja uma pequena correção de cor ou até a junção de objetos e cenas que são tecnicamente impossíveis de serem fotografados juntos. O objetivo é ter uma imagem bonita, perfeita. E isso é feito com auxílio de ferramentas como o Photoshop. Hoje em dia, 100% das imagens e fotos publicitárias são manipuladas. São retocadas e têm detalhes indesejáveis que são removidos, uma sujeira, um defeito. Isso é a publicidade. Não tem como ser diferente. Logicamente que existem exageros, mas não concordo que eles têm que ser regulados por lei”. Como exemplo, Xavier cita os filmes de ação, repletos de efeitos especiais e a maioria, claro, é feita em computador. “Quando você vai a um cinema, as cenas que tiveram algum efeito especial vêm com um aviso: ‘Esta cena foi alterada e não corresponde à realidade?’. Lógico que não. No cinema, assim como na publicidade, tudo é mexido, tem cores alteradas, tem edição, tem dublês etc.” Ele acredita que o livre arbítrio de leitores e consumidores é a base para uma sociedade inteligente e que as pessoas são capazes de ver e interpretar as imagens da maneira que acham mais apropriado.
O mesmo exemplo dos filmes de ação é dado pelo diretor de arte da Talent, Rubens Kato. Segundo ele, o exagero presente em certas imagens não é algo exclusivo da publicidade. Além disso, certos problemas em uma fotografia justificam muito bem o uso em excesso dos softwares. “Acho que existem casos e casos, são várias coisas que influenciam: foto ruim, pele mal maquiada, má iluminação, mau gosto. Mas concordo que há certo exagero no uso da ferramenta, as imagens estão ficando plásticas demais. Acabam ficando muito artificiais. Publicidade é sedução e todo exagero é mal visto, seja no discurso ou na maquiagem”.
José Fujocka, sócio-proprietário da Fujocka Photodesign, trabalha com grandes agências de publicidade, como WMcCann, DPZ, NBS, Mood, Leo Burnett e b!ferraz, entre outras. Para ele, o tratamento de uma imagem depende da finalidade da campanha. “Eu sou a favor do uso excessivo quando a campanha exige isso, por exemplo, numa campanha de carro, em que o nível de acabamento e detalhes de retoques nas imagens é gigantesco. Agora, quando se trata de uma campanha envolvendo modelos ou personalidades, eu sou a favor da moderação. Para mim, as campanhas que deixam os modelos embonecados perdem um pouco de sua credibilidade.” Ele acredita que a “Lei do Photoshop” poderá ser eficaz para imagens relacionadas à estética, nas quais as modelos assumem uma beleza irreal. E vai além, dizendo que esse tipo de trabalho deveria ser banido do mercado para não lesar as pessoas. “Se a ideia é defender o consumidor, esse tipo de retoque deveria ser proibido e não acompanhado de uma advertência. Hoje em dia, as campanhas ligadas à beleza realmente exageram muito. Um xampu, por pior que seja, vem acompanhado da imagem de uma mulher com os cabelos lindos e sedosos, que ninguém tem na vida real.”
Fujocka acredita que, mesmo que a lei “pegue” não trará grandes problemas na venda de um produto. Ele compara a frase de advertência à mensagem que hoje já pode ser vista nas embalagens de alimentos: “imagem meramente ilustrativa”. “Ninguém deixou de comprar uma lasanha ou um panetone mesmo sabendo que o que tem no interior não é igual à foto da embalagem”.


Na contramão do retoque

Apesar de algumas divergências, há praticamente unanimidade entre profissionais do setor de que há exagero no uso das ferramentas de edição de imagens. Atualmente, muitos consumidores já identificam propagandas “enganosas” e até apontam falhas ou absurdos em fotografias, o que pode fazer com que uma campanha vire piada na internet, por exemplo. É o caso do blog Photoshop Disasters (www.psdisasters.com), um exemplo bem humorado de imagens extremamente modificadas por profissionais que “pesam a mão” na ferramenta ou, dito de outro modo, não sabem como utilizá-la adequadamente. Todos os dias, leitores atentos enviam ao blog imagens de mulheres em posições de contorcionistas profissionais, braços e pernas que não saem de corpo algum, montagens mal feitas, erros de perspectiva, pessoas inseridas ou retiradas, nem sempre com sucesso ou em sua totalidade. São casos engraçados, que mostram a falta de bom senso no uso do Photoshop.
O fotógrafo alemão Peter Lindbergh, um dos nomes mais famosos da moda internacional, também se incomoda com o uso excessivo de retoques. Em 2009, publicou uma série de capas para a edição francesa da revista Elle, de belas mulheres como as atrizes Sophie Marceau e Monica Bellucci, e a modelo Eva Herzigova, sem qualquer tratamento de fotografia e também sem maquiagem. Com a repercussão positiva, outras publicações foram na mesma direção, como a Harper’s Bazaar, com imagens não alteradas de Cindy Crawford e Claudia Schiffer, e a revista People, que publicou sua edição das “100 pessoas mais bonitas” com 11 mulheres sem retoques. No Brasil, Isabeli Fontana, Raquel Zimmermann, Raica Oliveira, Luiza Brunet e Marcelle Bittar, posaram para a revista Época também sem maquiagem e retoques.
Kato afirma que não recebe pedidos para usar mais ou menos a ferramenta, mas que percebe uma tendência natural para se utilizar fotografias mais verdadeiras e com pessoas “de verdade”. Como exemplo, ele menciona o caso do banco Santander. “Usamos sempre fotos sem muito tratamento, com clientes e funcionários de verdade, e os consumidores aprovam”. Segundo ele, isso prova que a propaganda, para ser eficaz, não precisa de maquiagem.

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